terça-feira, 20 de maio de 2014

Voo sem pouso



Encontro-me sentada no jardim. Ainda não decifrei como cabia tanta vida naqueles olhinhos já sem brilho. A rotina tornava-se nova e tão antiquada ao mesmo tempo, como o museu de Langy. O dia parecia um navio ancorado no fundo do mar. Nem tão grande e nem tão pequeno, um tamanho suficiente para guardar as malas da viagem, comportar duzentos passageiros e esconder na ferrugem do seu esqueleto os risos e gemidos de uma noite em alto mar. Assim encontrava-se o dia, um círculo viciante de várias caricaturas e ações presas nos rumores do tempo.
Fundida a tudo isso eu permanecia em pé, também invisível, ao lado da escuridão daquele olhar. E dentre todas as coisas eram eles que me capturavam e davam movimento a mim, me fazendo flutuar nas águas repletas de almas que dançavam enquanto a embarcação afundava. Eu não reconheci as cores, eram fusões de todos os sabores e tonalidades do mundo um emaranhado de histórias e sensações contidas em cada uma daquelas pessoas. Porém meu campo de visão voltava constantemente a ele. Sua alma era clara e limpa, como uma brisa de inverno. Ele contornava as criaturas marinhas em uma performance que impediam até que eu piscasse.
Um carro buzina, o sinal fecha e eu retorno a realidade. Ele ainda continua do meu lado, sem vida e tão vivo ao mesmo tempo. Um verdadeiro paradoxo.
Deito-me ao seu lado, algumas pessoas desviam seus olhares a mim e outras continuam no automático. Agora o único movimento que exerço é a minha respiração. Seu corpo está gelado, mas seu olhar queima como a última brasa de uma fogueira que insiste em não se apagar. E não vejo mais o mundo do ângulo de um navio afundado. Vejo o mundo com os olhos dele, posicionados no céu mantendo a concentração nos voos. Sinto-me em êxtase, fazendo piruetas entre as nuvens. As asas, agora minhas, batem forte e devagar, com ritmo e sem ritmo. Um verdadeiro compasso descompassado.
Vou experimentando as asas até perder o controle. As penas colidem com a vitrine de uma loja, caem. Espalham-se no chão e no ar. Suas cores migram para meu olhar e tornam-se cinza. O corpo cambaleia e cai ao chão, mas os olhos continuam cheios de vida tentando voar. 
Novamente desperto ao real pelas notas desafinadas da rotina. Levanto e me direciono a massa. Seu canto ecoa fortemente em meus ouvidos, não olho para trás e sigo. Os passos aumentam e o canto diminui, ouço agora apenas o canto dos automóveis. 

Sabrina Stolle

domingo, 11 de maio de 2014

Palavras sem timbre



O vidro está embaçado
Escorrem nele gotas de chuva que umedecem até a minha alma
Listras humanas perambulam pelo pátio
A terra mistura-se a pele.
O calor escapa do corpo,
Desaparece no nevoeiro
Posso ouvir suas vozes silenciosas adentrarem meus ouvidos
Timbres de todas as idades, de todas as intensidades colam-se a minha face.
Meu rosto é um jornal de palavras secretas, lacradas.
Um dos olhares voltados ao chão se direciona a mim
Suas ferramentas caem ao chão
Espalham a lama que descompassam as listras do pijama
Sem piscar ele torna-se uma sombra na multidão de corpos que se movimentam, sem pausa.
Articula a boca cada vez mais rápido,
Ríspido, sem ritmo.
Palavras sem som que trincam o vidro
Estremecem as esquadrias da janela.
Quanto mais oculto a palavra mais forte ela atinge a vidraça.
As rachaduras deslocam projetando-se contra mim...
O jornal estampado na minha cara é furado, rasgado
Manchado de vermelho.
Na mesma fração de tempo em que as palavras desaparecem de mim ele cai ao chão.
Um projétil lançado que silencia novamente o pijama listrado.

Sabrina Stolle

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Aquarela humana


Hoje eu suguei como um redemoinho todas as partículas que estavam no ar ao meu redor. Transportei tudo que eu podia para o centro do meu ser. Inalei toda e qualquer matéria orgânica e inorgânica que meu corpo suportou.
As paredes já não me contem mais, tenho absorvido e deixando escapar muitas coisas para dentro e fora de mim.
A minha visão anda distorcida, meus movimentos andam cambaleantes como uma música fora do ritmo.  E tudo vai deslizando dentro de mim, algumas coisas aderindo outras vazando como bolhas de sabão.
E não tenho olhado para trás, mas sei que a aquarela das minhas digitais tem pintado muitos edifícios e manchado muitas epidermes. Não tenho medo de andar de braços abertos, sentindo tudo que me circunscreve a noventa e oitenta graus.
Meus pés têm imprimido nas calçadas e por onde andei um pouco do que tomei para mim e embrulhei com sentimentos clandestinos.
A arquitetura do meu corpo tem se apagado com cada registro que tem ficado por onde passei. Os desenhos da minha face têm diminuído a cada dia, por mais que eu tente respirar tudo que me permeia.
Os meus passos desproporcionados e a bússola inquieta fundida no meu coração têm pintado na cidade uma tela com traços fortes e fracos, com cores roubadas, mastigadas e misturadas dentro de mim.
Dissolvo assim, a minha existência a cada pincelada restando apenas rabiscos errantes anexados a pintura.

Sabrina Stolle