Outubro de 1993. O vento soprava lá fora, arrancando as
folhas dos galhos. Batia portas e janelas, como um pianista sem ritmo.
Do lado externo do mundo o seu coração batia. Podia sentir o
som das vozes desajeitas o ritmo da casa, da rotina. Queria enxergar, mas não
conseguia. A luz do mundo estava apagada, para ela, mas isso não a assustava.
Os anos foram se passando e o mundo ganhando forma.
Os dias eram lentos, Amora sentava em frente à janela e ali
permanecia, ouvindo a vida pulsar. Às vezes sua mãe deslizava seus dedos sobre
ela, acariciava seus cabelos cor de amora, textura de amora, fios de Amora.
E o relógio girava e o céu mudava de cor, as notas no seu
ouvido iam diminuindo lentamente, repousava o corpo e mente no silencio da
noite.
Todo o dia Amora acordava com o desejo de tocar coisas
novas, deparando-se com paredes frias e os mesmos objetos de sempre...
Queria sentir a terra, o calor, a chuva...
Queria ouvir vozes novas, sentir o mundo. Não, ela não
acredita ser diferente. Podia ver o mundo com as mãos e isso a fascinava.
Cansada de relutar pelo direito de explorar a vida, sentou
de frente para a mesma janela de sempre: cortina lisa, comprida com uma leve
elevação no seu centro. E ali ficou durante horas quando, de repente, um novo
som percorreu o seu corpo. Sentiu-se livre, suave...
Estilhaços de vidros quebraram a paz.
Acordou em um lugar diferente, com sons diferentes.
Amora sentiu-se confusa, desorientada... Tentou levantar,
mas perdeu o equilibro. As duas camadas de plumagem acopladas em suas costas
não estavam mais ali... Cambaleou, tropeçou, esbarrou sua cabeça em um jaleco
muito bem alinhado que suavemente desamarrou a plumagem amarrada para trás.
Recobrou o equilíbrio, deitando novamente na cama passando a ouvir vozes que
falavam sobre asas, sobre anjos quando adormeceu.
Os ponteiros do hospital marcavam meia noite e Amora dormia
tranquila, sono quebrado por uma luz atingiu a sua visão. Abriu os olhos rapidamente transformando o seu mundo em um mosaico de cores. Pode ouvir
novamente a melodia que lhe causara alguns arranhões no final daquela tarde...
Toda de branco ela cantava lindamente, balançava a plumagem colorida voando
pelo quarto. Na parede, um portal. O anjo voou até ele e chamou por Amora que
permitiu tocar o céu.
Sabrina Stolle